(os textos assinados são da exclusiva responsabilidade dos seus autores)

Leia aqui a homenagem da Fundação António Quadros a António Telmo.



quinta-feira, 29 de outubro de 2009

O OUTONO, 3



[de Verbo Escuro]

IV. Se a penumbra outonal aviva a nossa tristeza, torna-a distante de nós, como que a recebe, em seu nubloso seio morto…

Emigramos para o reino da Quimera, e sentimos a nossa presença de carne e osso esbater-se, divinamente, em névoa e sonho…

(continua)

Teixeira de Pascoaes

NO CORAÇÃO DA ARTE, 27

Cynthia Guimarães Taveira





O Centro
Aliciaram um dia Rubens para que trocasse tintas e telas por cadinhos e fogos alquímicos. Rubens respondeu que toda a sua alquimia estava na pintura. Pegou no pincel e continuou a pintar, sereno. O centro do alquimista e do pintor é o mesmo. Confunde-se a preparação das tintas com esses enxofres e mercúrios. Confundem-se os vasos e as telas, confunde-se o fogo presente num corpo rosado, com esse outro abrasando o forno. É o mesmo fogo aquele com que se nasce, feito de saltos de fé, feito de visões, de associações e dissociações. Mas, mesmo no seu centro, reside essa vontade, não de imortalidade, mas de esperança. Conhecer no intimo a matéria da alma, revela-la camada por camada, descrevê-la em experiências de cor, atravessar a escuridão num voo, estar perto das raízes da árvore, tocar as suas pontas e, aí, nessa precisão sensível, ver a luz do espírito, conhecê-la, morrer no abandono, ser ela, e, no fim, explodir em luz para o mundo e salvá-lo daquilo para que não foi feito.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

EXTRAVAGÂNCIAS, 36

O milagre do Le Bateleur*
Ângelo Monteiro

A primeira vez que li o LE BATELEUR (Lisboa: Átrio, 1992), de António Telmo, seu autor me fez lembrar um Jorge Luiz Borges português. Numa segunda leitura veio-me à idéia de que Jorge Luiz Borges bem poderia ser um António Telmo argentino. O jogo de espelhos, a escala de similitudes bem como de contrastes, toda uma infinita série de gradações de sentido levou-me a aproximar um do outro, mas o solo que alimenta a criação do escritor portenho não é o mesmo do escritor português, em que o cruzamento subterrâneo de várias influências, não somente lusas, mas também mouriscas, judaicas ou cristãs-novas, lhe permite um diálogo permanente com um alter-ego perfeitamente à sua altura, que é o personagem Tomé Natanael, com o qual se completa até anagramaticamente.
Outra diferença: Jorge Luiz Borges toma, muitas vezes, como ponto de partida de sua narrativa uma relação com literaturas supostamente existentes ou desaparecidas, para mostrar, no fundo, a evanescência de todas as coisas e, afinal, sua relatividade, ao passo que António Telmo lida com uma tradição viva, de que busca desvelar o misterioso significado para além do campo imediato das aparências.
Os contos de LE BATELEUR formam na realidade uma fabulação única marcada por cogitações que vão desde a criação da linguística no século XIX, na Alemanha, e os problemas provocados pelo choque com a herança hebraica da Kabbalah, – de que António Telmo é um exímio estudioso – até à história secreta dessa mesma linguística, envolvendo, inclusive, uma fantástica teoria conspiratória.
Tudo começa com a história de um poeta que foi pintado por um pintor. A imagem do poeta, de tal maneira se tornou estranha àquela que possuía em vida, que terminou por dominar a primitiva na memória de todos. A pintura do poeta virou um negativo, em suma, da primeira carta do TAROT que traz a figura de um bateleur, uma espécie de arlequim ou prestidigitador. Não se sabe ao certo se se trata da história – como parecem sugerir a capa e a contracapa, onde estão as duas figuras – do retrato do poeta Fernando Pessoa feito pelo pintor Almada Negreiros.

O argumento por excelência do livro é um caloroso debate intelectual entre António Telmo e Tomé Natanael: e não escapa a esse debate nem uma nova interpretação do quadro de Rafael, A Escola de Atenas, - por sinal bastante original, por enfatizar antes o foco interior de uma mesma energia nos olhos dos dois filósofos , Platão e Aristóteles, que a convencionalíssima opinião dos dedos para cima e para baixo de ambos, como representando apenas suas posições opostas – nem uma absolutamente surpreendente comparação ente as Categorias de Aristóteles e o seu equivalente à luz da Kabbalah.
Há, portanto, uma relação de simetria entre o retrato do poeta feito pelo pintor – que nos aparece, prestidigitadoramente, como o negativo de um arlequim – e a A ESCOLA DE ATENAS, de Rafael, - que procura representar a histórica ambivalência entre os dois pensadores gregos mais famosos – à qual somos convidados a contemplar. Para que contemplando essa simetria, possamos participar, subindo os degraus necessários, do conflito eterno e emblemático entre a realidade e a aparência, ou, noutro plano, do antagonismo, em sua função complementar, entre a Arte e a Filosofia.
António Telmo é um dos poucos autores contemporâneos, daqui ou de além mar, de quem realmente podemos aprender algo; via de regra desaprendemos de tudo quando começamos a lê-los, em sua grande maioria, porque o culto da personalidade parece neles ser mais absorvente que a ânsia, afinal legítima, de comunicar sua própria intuição ou uma forma da Verdade que supostamente lhe foi dado captar.
Em LE BATELEUR temos um autor erudito sem deixar de ser sábio, sobretudo pela exemplaridade de seu instinto artístico, onde não há lugar para divagações tão brilhantes quanto estéreis, que se querem imbuídas da mais alta modernidade, porém desconhecem inteiramente o espírito da literatura e a verdadeira marcha do pensamento.
____________
* NOTA DO EDITOR: ao folhearmos o n.º 16 de Encontro – Revista do Gabinete Português de Leitura de Pernambuco, datada de 2000, onde vem publicada uma entrevista que António Telmo concedeu a Ângelo Monteiro, encontrámos, da autoria deste grande poeta e ensaísta brasileiro, o escrito notável, agora publicado, sobre O Bateleur do mesmo António Telmo. Para além da grande inteligência, e da não menor sensibilidade, postas na leitura da obra do autor de Arte Poética, trata-se de um acto de apreço, infelizmente hoje pouco comum, pelas manifestações da pátria portuguesa .

terça-feira, 27 de outubro de 2009

O OUTONO, 2

[de Verbo Escuro]
II. O outono é belo para o homem, porque o faz antegozar o repouso eterno, e acorda, em nós, o fantasma adormecido, o Anjo remoto em que se transmuda a criatura, depois do último suspiro.
III. Todos nós, pelo outono, somos esse Anjo, dalgum modo… E é, por isso, que os sentidos adquirem estranhas virtudes, sob o primeiro sopro do nordeste e a primeira nuvem escura… Ouvimos e vemos, mais além; e a luz do nosso olhar, habituada apenas ao contacto das cousas materiais, parece dar forma e relevo a Figuras, que viviam dispersas em brumas de melancolia…
(continua)
Teixeira de Pascoaes

PENSANDO À BOLINA, 12

Pedro Sinde


As mil e uma noites de Dinarzade (I)
- Todos pensam que a heroína d'As Mil e uma Noites é a bela e sábia Xerazade, mas não é; ou melhor, não é inteiramente.
Foi assim que Denis me começou a falar da leitura que tem feito desta obra magnífica. Fiquei intrigado e perguntei-lhe quem era, então, o herói, se seria o Sultão.
- Não, o Sultão é levado pela história; a vida de Xerazade parece estar nas suas mãos e, no entanto, ele é que está nas mãos dela. A verdadeira heroína é a irmã de Xerazade: Dinarzade. Vou procurar explicar-te porque penso assim. Como sabes, o Sultão, traído pela mulher que lhe foi infiel, para não voltar a ser traído, resolve a cada dia desposar uma nova mulher, mandando-a matar no dia seguinte, depois da noite de núpcias.
Xerazade, querendo libertar o reino e o próprio Sultão de tal infelicidade, oferece-se ela mesma ao Sultão. Tem um plano em mente. Depois de casada e passada a noite de núpcias, mas antes de o sol nascer, começaria a contar uma história ao Sultão, mas por tal modo que a tivesse de interromper com o nascer do dia, altura em que o Sultão partiria para os seus afazeres. Teria, no entanto, de a interromper num ponto tal que o Sultão, levado pelo enredo, isto é, enredado, a poupasse esse dia para ouvir o final da história antes da manhã seguinte. Para executar este plano, necessita, no entanto, da colaboração de alguém que a acorde antes do sol nascer e lhe peça "desinteressadamente" para continuar a história. À sua irmã, Dinarzade, cabe essa missão grave de, todos os dias, a acordar antes do nascer do sol e, com ela, o Sultão, que partilhava o leito com Xerazade.

Dinarzade é, portanto, aquela a quem cabe estar vigilante e, simultaneamente, ser o estímulo para o início de cada história. Ela é a imagem do motor imóvel, age sem agir; é ela quem acorda a irmã e o Sultão, mas quem a acorda a ela, Pedro? Ela é que é o princípio do movimento.
Percebes agora porque é que me parece que a verdadeira heroína é a Dinarzade? Ela é o espírito da irmã, que é, por sua vez, a alma do Sultão. Para que as histórias de Xerazade actuem sobre nós como actuam sobre o Sultão devemos descobrir, de algum modo, a Dinarzade em nós, esse espírito que todos os dias nos acorda para a história que temos na nossa alma e que vemos desenrolar-se no mundo fora de nós. Mas as mil e uma noites só começam aqui, há mais mistérios essenciais que gostava de conversar contigo. Isso terá de ficar, no entanto, para outro dia, porque agora mesmo tenho de ir embora e ver que história me conta Xerazade neste dia.
E assim fiquei eu, como o Sultão, inquieto, à espera que o Denis me fale de outros "mistérios essenciais" guardados n'As mil e uma noites.

texto originalmente publicado no blogue Maranos

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

O OUTONO, 1



[de Verbo Escuro]

I. Despem-se as árvores da sua carne de verdura, e o seu vulto esquelético, às horas do poente, sangra, crucificado no crepúsculo.
No oiro das folhas mortas, no roxo dos ermos longes, adivinha-se a mão nublosa que os pintou, porque ela aperta-nos o coração no peito. É a mão da Tristeza, que é a própria Morte em sombra de ternura, a morte beijando-nos na face…
(continua)
Teixeira de Pascoaes

AFORISMOS, 8

Eduardo Aroso

36 – Um escritor, ao tratar um tema de índole religiosa, ou nos ajuda a (re) ligare o que há de humano e divino em nós, ou contribui para nos afastar cada vez mais da nossa natureza essencial. A sua obra, ou nos eleva, ou nos rebaixa. Ou abre horizontes de infinitude, ou no seu cepticismo (às vezes cinismo) pode, com mais ou menos alcance, substituir-se à fonte de onde bebeu. Esse puro som da água, o autor poderá ouvi-lo, mas nunca escutá-lo. E assim, certas criações literárias vão-nos ficando como “manuais de crueldade”, e o mais perigoso é que a questão se pode tornar em novos e maus costumes, isto é, a obras desta natureza seguem-se outras do mesmo estilo…
37 – Como alguém disse, a negação de Deus é uma forma de analfabetismo. Ora, alfabetizar o mundo só a Vida o pode fazer devidamente, a par com outras ajudas que os homens concebem em sintonia. O ateu permite activar no crente a potência da fé e do conhecimento revelado, por vezes a companhia momentânea do sublime. Ele é a nota dissonante que torna evidente a beleza da harmonia. É certo que todos somos filhos de Deus, criaturas do Criador, porém aquele que nega a transcendência é como o aviador que não sabe onde vai: se no ar, em terra, no mar, ou em lado nenhum. O crente vê a si e mais além no espelho da Criação. O ateu é o espelho partido…
38 – Aquele cuja língua golpeia a casa sagrada da Palavra do Senhor e comete violação no regaço do coração dos simples, um dia poderá ou não ter a graça de Deus de não ficar tolhido das mãos para manejar o arado, a caneta ou o computador.
39 – Fazendo jus ao ditado popular, por muito que um boi olhe para um palácio, o boi nunca saberá o que é um palácio!
40 – Ai de nós se não formos capazes de (re) anunciar um mundo melhor, a comunhão dos dias que começam nas manhãs de esperança (leia-se ou releia-se Prisioneiros da Esperança de António Carvalho, Âncora editora). Ai de nós se não formos capazes de mostrar a diferença dos livros efémeros e daqueles que foram escritos sem prazos de validade, para eterno benefício da humanidade. Anunciar, em tempos de agora para outros tempos, requer o exemplo da navegação perfeita por oceanos de sentir, de pensar e de agir.

domingo, 25 de outubro de 2009

O CAMINHO DO CAMINHO, 8

Cynthia Guimarães Taveira




Heresias e dissidências
Enquanto caminhava observava as pedras do caminho.
Porque estariam elas alí? Como as evitar? Como as contornar?
Talvez a razão delas fosse tornar o caminho menos recto, mais sinuoso, mais dificil.
As pedras do caminho obrigavam-no a tocar as margens nos desvios, e a ver novas paisagens. Paisagens outras inesperadas.
Andava nestes pensamentos quando ouviu um escritor dizer que a heresia deveria ser um direito, bem como a dissidência, escrito a letras fortes na Carta dos Direitos Humanos. Estranhou, estranhou muito e pensou de si para si:
A heresia não é um direito, é uma necessidade.
Tornar a heresia um direito é acabar com ela.
A heresia não é só religiosa, é também ideológica.
Houve criadores heréticos deportados para a Sibéria.
E até bailarinos heréticos exilados de um regime.
Dançavam mas também pensavam.
Não tiveram direito a dissidência, tiveram direito a fugir, a ter medo,
a não ver mais o seu país, a sua família.
Hoje todos temos direito à dissidência.
E estamos num exílio forçado, de nós mesmos e dessa misteriosa palavra
chamada Humanidade...
Hoje já quase nada é herético e por isso vazio.
Tudo vale a mesma coisa, tudo tem o mesmo peso.
Não há maioria nem minoria, não há margens que nos esperam.
E o mundo entristece sem esperança, sem ideias, sem crenças.
Toda a natureza se mexe porque em algum momento é herética.
Toda a sua heresia é uma necessidade, pois na natureza não há direitos...
E os tortos fazem muita falta…
Escritor, não és herético do teu Partido e és herético para com Deus
Sorte a tua o poderes ser e poderes desprezar letras antigas.
Estende mais as asas da heresia e vai mais longe, até à tua ideologia.
Nesse dia e apenas nesse dia, tomarás o gosto dos seres livres.
Não por terem nascido livres mas porque se libertaram.
Torna a heresia um direito e os homens não se libertarão mais.
E ficarão presos a uma liberdade dada mas pouco amada.
Ao contrário dos outros que a conquistaram e, por isso, a amam.
No caminho do caminho, todos os passos são de libertação
E a liberdade, a verdadeira, fica sempre mais além…

NO PRÓXIMO SÁBADO, EM SESIMBRA

Colóquio. A apresentação do quarto número da revista Nova Águia, subordinado ao tema Pascoaes, Portugal e a Europa, dá o mote ao colóquio Encontro com Pascoaes, que no próximo sábado, dia 31, pelas 15h00, irá ter lugar na Biblioteca Municipal de Sesimbra.
O evento conta com a presença de António Cândido Franco, António Carlos Carvalho, António Telmo, Luís Paixão, Pedro Martins, Renato Epifânio e Rodrigo Sobral Cunha.

sábado, 24 de outubro de 2009

NO PRÓXIMO DIA 7 DE NOVEMBRO

Lançamento. A Verdadeira História de Aladino e a Lâmpada Maravilhosa, livro da autoria de Rodrigo Sobral Cunha, de que já aqui se falou, e que constitui bem uma expressão do que se possa entender por filosofia extravagante, será lançado exactamente daqui a duas semanas, com a chancela da Zéfiro, na Quinta da Regaleira, em Sintra. O programa do evento é vasto e aliciante, começando logo pela manhã com uma visita ao local, conduzida por Manuel Gandra. A apresentação da obra, marcada para as 15:00, está a cargo de António Telmo e Pedro Sinde, dois nomes que, tal como o do autor, integram o círculo dos Cadernos, e que assinaram respectivamente o prefácio e o posfácio do Aladino, que conta ainda com ilustrações de Carlos Aurélio. Para consultar o programa, clique na imagem.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

NO CORAÇÃO DA ARTE, 26

Cynthia Guimarães Taveira




O Mercado
Havia os que compravam e vendiam por não saberem criar. Por não saberem ver. Por não saberem amar. O mercado era estranho para o pintor. O único que lhe fazia sentido era aquele onde as bancadas fervilhavam de cor. Laranjas, pêssegos, uvas. Uma pintura cuidadosamente arranjada pelas vendedoras de cintura grossa que cantavam os seus tesouros. O Marketing, o compra e vende, o espólio, as fundações, os valores e cotações faziam parte de uma linguagem nova que se relacionava com a arte mas nada tinha dela. No silêncio musicado do seu atelier só havia memórias, visões, desejos e a sua mão revelando facetas novas das cores, fragmentos de Deus espalhados por aqui e ali. Nesse universo não havia valores. Não havia espaço para eles, porque esgotado de etéreo, transbordava pelas janelas, pelas portas, pelas frestas, ondas e ondas desse calor, desse amor e dessa angústia fininha que percorre a paixão. Lá longe, noutro mundo, estavam homens cruzando as pernas, de gravata pendurada, olhando o horizonte com olhos tristes, enquanto na parede, atrás deles, um quadro os espreitava à espera do seu despertar.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

EXTRAVAGÂNCIAS, 35

Cardoso!
Pedro Martins

Seis horas da tarde. O comboio descreve o arco da curva com a ponte à vista. Ao fundo, à esquerda, o torso deitado da Arrábida, imerso na poalha da distância. Em baixo, o largo Tejo, fluindo manso e baço. A meu lado, frente a frente, duas mulheres próximas da idade de Balzac. Uma é loira, outra é morena. Entretêm uma conversa banal. Deitam-se a apreciar as qualidades profissionais dos seguranças privados que têm passado pela repartição pública onde trabalham. A morena revela-se loquaz e assertiva. Vê-se que é senhora de muitas palavras e poucas letras. A loira quase se limita a escutá-la; mas lá vai lançando uma ou outra frase atenta, como quem protesta a máxima dedicação à sua interlocutora.
Vencido pelo torpor da fadiga, deponho o livro que me dispunha a ler. Não resisto à futilidade da conversa que se desenrola cerce. Afoito-me em olhares de viés. Quase indiscreto, entro naquele pedaço de vida rasteira. E, pouco impressionado, vou registando virtudes e proezas laborais.
Eis que a morena tem uma branca. Quer referir-se ao campeão dos vigilantes mas esqueceu-lhe a graça. Está debaixo da língua. Requerida pela colega, a loira não corresponde às instâncias. Os lapsos momentâneos da memória propagam-se num fulgor contagioso de dominó!
– Carvalho! Não, não, não é Carvalho...
A faladora forceja, mas a cara trigueira trai-lhe a desilusão.
Naquele preciso instante, digo para os meus botões: “É Cardoso. O homem chama-se Cardoso. De certeza que se chama Cardoso”. Tenho vontade de me intrometer na conversação para revelar às duas damas o nome do cavalheiro. Serei olímpico, pois estou seguro de haver submetido a Esfinge. Mas retraio-me. E detenho-me.
– Ramos! Não, também não é Ramos…
A morena porfia. Debalde.
Como se de um sinal se tratasse, noto que a demanda do nome se demora no reino vegetal. Primeiro foi a árvore. Agora são as ramagens. E está certo. Mas é no saibro, pejado de cardos, e não ao alto, que a morena tagarela deve procurar. Nem outro desfecho – já se vê – consentiria o palavreado chão e inóspito com que estranhamente me vem enleando…
De súbito, um raio e um trovão irrompem-me na alma.
– Cardoso! É Cardoso. É o Cardoso. Lembras-te?
A gárrula acaba de triunfar. Aliviada, exibe num sorriso franco o troféu da sua maiêutica.
Dou por mim varado. No fundo, tomo agora por coisa séria o que antes me parecera apenas um jogo. Quase sem pinga de sangue, vejo quão vacilante era afinal a minha segurança de há pouco. E no entanto, eu estava certo…
Talvez a coisa tenha feito o seu caminho por associação de ideias. Carvalho e Cardoso, sobre evocarem aspectos botânicos diversos, têm em comum a primeira sílaba. E, o que é mais: eu, que sou Cardoso pelo ramo materno, poderia igualmente ser Carvalho por esse lado. Na verdade, o meu avô Rogério foi o último, na linha recta, a usar tal apelido. No nome da minha mãe, Elisabeth, apenas o Cardoso, tomado a minha avó, haveria de persistir.
Cardoso! Como te não hei-de estar grato, gaia morena chilreante!? Por instantes, a tua árvore frondosa e os seus ramos trémulos devolveram-me as vergônteas da progénie, fazendo-me recordar quem não devo esquecer. E, no final, vem o teu zelador excelente, com a sua homonímia de raso adusto, trazer-me a metáfora de um memento mori!
Morena, ó morenita, já pensaste bem em todos os sobrenomes que se perderam na poeira dos séculos para que um homem pudesse hoje nascer? Quanto nos não diriam sobre ele!?

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

ANOTAÇÕES PESSOAIS, 32

António Carlos Carvalho

O objectivo era claro: escrever um livro que suscitasse algo semelhante ao que acontecera em torno de «O Evangelho Segundo Jesus Cristo». Obviamente, já não há nenhum governante diligente para fazer o papel de censor, mas o escritor e a sua agente literária-consorte (que lhe deve ter inspirado novamente o tema) sabiam muito bem que isso iria dar alguma polémica, isto é, chamar a atenção para o livro, factor essencial nas vendas que se desejam. Por outro lado, é sabido que o laureado escritor não aceita que as crenças religiosas sejam mais fortes do que as ideologias, nem que a Bíblia prevaleça sobre «O Capital». Daí esta nova ofensiva, desta vez escolhendo um tema do (mal) chamado Antigo Testamento, o que permite ao velho escriba fazer um ajuste de contas final com o Deus em que diz não acreditar. E agora pode morrer descansado, dizendo ao mundo, como o outro escritor: «Caim sou eu».
Convém aproveitar este lamentável episódio para revermos o que sabemos sobre a figura de Caim, levando desde já em conta diversos factores de ponderação:
-- A «Bíblia» é, na verdade, um conjunto de livros, todos eles diversos mas «falando» uns para os outros, numa linguagem própria, por vezes crua, por vezes simbólica:
-- Não se pode ler como quem lê um romance, sobretudo os romances «leves» («light») que agora estão na moda: trata-se de um texto carregado de múltiplos sentidos, pelo que se recomenda fazer uma leitura meditativa, sempre acompanhada por comentários, os antigos e os modernos, dessa passagem do texto;
-- Uma leitura simplesmente «literal» (ainda por cima de uma tradução, por vezes a tradução de uma tradução) induz em graves equívocos de interpretação, de todos bem conhecidos, infelizmente.
-- Aquele conjunto de livros, aquela biblioteca, a que no Ocidente se convencionou chamar «Bíblia» tem narrativas históricas, certamente, mas constitui essencialmente uma série de histórias exemplares, escritas para nos fazerem reflectir – levando-nos a concluir, por exemplo, que «nós estamos lá», somos (ainda) iguais a muitas dessas figuras, com os seus defeitos e erros, não mudámos nada, a não ser para pior...
Dito isto, vamos então tentar perceber o que significa Caim (e Abel). Socorrendo-nos dos comentários feitos por Raphael Draï, André Neher, Claude Birman, Jean Zaklad, nossos contemporâneos.

Caim assassina Abel, de Albrecht Dürer
Primeira observação: «Caim» não é um nome, é uma designação – cuja raiz, KN, é também a de KIN’Á, ciúme ou inveja, e a de KINIAN, aquisição, apropriação. Eva (Hava), que o designa dessa maneira, indica assim que o «adquiriu» de Deus («Adquiri um homem com Deus»). Eva quer marcar a sua autonomia criativa e só ela, a mãe, o reconhece: «Caim» é monopólio de Eva.
«Caim» designa um tipo humano ou de humanidade. É agricultor, sedentário, vive segundo o tempo. «Abel» (Hevel, vapor, algo sem consistência), o seu irmão gémeo, mas que vem depois, «a mais», como um acrescento, é pastor, nómada, vive de acordo com o espaço. É outro tipo humano ou de humanidade.
«Caim» substitui Adam no cultivo da terra mas ignora que a deve guardar (tal como não sabe que deve ser o guardião do seu irmão), não vê que trabalha a terra do exílio, um solo que está degradado – e talvez por isso «Abel» se torna pastor, para salvar o essencial mantém-se à margem do irmão e do solo. Na verdade, «Caim» e «Abel» ignoram-se mutuamente (uma das obsessões bíblicas é o tema da fraternidade necessária, a ser construída). Não se podem misturar (mais tarde será escrito: «Tu não usarás uma veste de lã e de linho misturados», a lã representa «Abel» e o linho, Caim).
«Caim» efectua um trabalho cíclico, vê o trabalho como um fim em si mesmo, não sabe valorizar o lado espiritual dessa tarefa: devia fazer dessa actividade material uma liturgia. Julga que ser filho de Adam é trabalhar, quando se trata realmente de completar a Criação.
Os dois irmãos fazem oferendas a Deus: «Caim» apresenta uma oferta de produtos da terra, simples, indiscriminados; «Abel» oferece primogénitos, as primícias do seu gado.
Deus recusa a oferta de «Caim» e as faces de Caim caem – para a terra, da qual tem dificuldade em separar-se. Deus interroga-o: porquê essa reacção de irritação e de dor? «Caim» não responde. Deus avisa-o: «Se tu te tornares melhor, poderás voltar a levantar-te; se não, vê que a falta está agachada à tua porta, prestes a saltar, aspira a atingir-te mas tu, sabe dominá-lo».
E então «Caim falou ao seu irmão mas aconteceu» (espaço em branco no texto) «como estavam nos campos, que Caim se lançou sobre Abel, seu irmão, e matou-o».
Se «Caim» falou, não sabemos o que disse, nem qual foi a causa da discórdia – ciúme, aparentemente.
Quando Deus lhe pergunta onde está «Abel», «Caim» responde: «Não sei, acaso sou eu o guardião do meu irmão?» -- «Caim» tenta inverter a situação, tornando Deus responsável do seu acto, o primeiro homicídio. Na verdade, só toma consciência do seu acto depois, não reconhece o homicídio, esconde a vítima, camufla o seu sangue, que grita para os céus.
Condenado à errância sem Oriente, marcado por um sinal (aliás um símbolo, OTH, palavra formada pela primeira e pela última letra do alfabeto hebraico, que indica uma das causas do crime: a carência do simbólico, do domínio da pulsão de predador), «Caim» não assume o OTH, nega-o indo instalar-se num lugar chamado NOD (raiz ND, errância, inversão da raiz DN, de Din, justiça). O signo que marca o seu corpo era destinado a subtraí-lo à violência das represálias: «Se matarem Caim, será vingado sete vezes» (um número ilimitado). Não é um estigma, é um interdito.
«Caim retirou-se de diante de Deus e habitou no país de Nod, a montante do Eden». Entrando em rivalidade com Deus, quer fundar o seu próprio mundo, vai construir uma cidade que terá o mesmo nome do filho, Hanokh (raiz HNKH, que indica inauguração, novo início), como se a cidade fosse também sua filha.
A tradição oral conta que «Caim» foi morto pelo filho, e este, por seu turno, morto igualmente pelo filho. Uma sinistra árvore genealógica, que vai desenvolver técnicas de conquista, matando para alcançar os seus fins.
Só a partilha entre «agricultores» e «pastores», entre «citadinos» e «nómadas», só a noção de que temos de viver juntos, em paz, numa terra que não nos pertence – pertence a Deus, como as nossas vidas --, somente a fraternidade verdadeira impossibilita o fratricídio.
Mas ainda não aprendemos que só pode ser assim.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

PARA DESCOBRIR: UMA PÁGINA SOBRE FERNANDA DE CASTRO

Blogue. "Poetisa, romancista, dramaturga e tradutora Fernanda de Castro estreou-se aos 19 anos com o livro de poesia Ante-Manhã. Vence nesse ano (1919) o Primeiro Prémio no concurso de originais do Teatro Nacional, com a peça Náufragos. Com o romance Maria da Lua (1945) foi a primeira mulher a obter o prémio Ricardo Malheiros da Academia de Ciências de Lisboa. Em 1969 é-lhe atribuido o Prémio Nacional de Poesia. Foi também tradutora de Rilke (Cartas a um Poeta), de Katherine Mansfield (Diário), de Sófocles, Pirandello, Maeterlinck e Jonesco."

Desde 2007, o seu bisneto António Quadros Ferro vem-lhe dedicando uma página na Internet. Pode lê-la aqui.

SAUDAÇÃO



Aniversário. De parabéns está O Bar do Ossian, que por estes dias completou um ano de vida.
Saudações Extravagantes!




PALAVRAS QUE FAZEM VER, 14


[Álvaro Ribeiro, a imaginação e o conto]

“A cultura da imaginação é um factor psicoterápico muito indicado contra o medo, a agressividade e a vingança, e portanto um nobre processo de promover nas crianças a maturidade emocional. Inculta, a imaginação estaciona nos processos elementares, torna-se rígida e degenera, deixando o homem progredir física e intelectualmente até à hora reveladora das perturbações psicopáticas. O homem vulgar, desinteressado das actividades artísticas, substitui a imaginação pela representação mental, ou pela percepção, e satisfaz o seu instinto lúdico a discutir em termos pueris os distantes movimentos de uma bola.”
“Tudo que pretendermos ensinar à criança há-de ser de estilo narrativo e em narrativas hão-de ser todos os ensinamentos que lhe desejarmos transmitir. Na forma de conto, nas variadas espécies de contos, é que a credulidade pueril assimila os conhecimentos indispensáveis ao seu descobrimento do mundo. Ela estabelecerá o paralelo entre a imaginação e a inteligência, entre o imaginado e o inteligido, entre falsidade e realidade, para chegar à fase de crítica que pressupõe perfeito uso da razão.”
“Todas as outras faculdades humanas podem ser exercitadas em consequência do progresso da razão prática, estética e teórica, segundo o programa de ensino que costuma ser mais racional do que experimental; mas a imaginação cessa de progredir depois da adolescência, excepto nos homens que foram chamados a superior destino por vocação artística, filosófica ou religiosa. Não será erro dar preferência ao ensino da imaginação até à idade de catorze anos, combinando os exercícios abstractos que a estimulam com a provação concreta das obras de arte que a confirmam. Graduar os contos segundo o tipo de maravilhoso adequado às idades e aos sexos dos estudantes, será trabalho de classificação literária que culminará na habilitação para o entendimento da história dos povos.”
Álvaro Ribeiro
(excertos retirados de A Razão Animada, INCM, 2009)

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

AFORISMOS, 7

Eduardo Aroso

31 - Granitos da Beira-Alta: a vida é dura.
32 - Centros Comerciais: labirintos do efémero património.
33 - Quando Portugal fez a sua adesão à CEE, assinou o manifesto da sua anticultura na sua contranatura. Não que o nosso país não seja europeu. Todavia, aderindo ao centralismo do velho continente (hoje refém das suas leis), negou assim Portugal a sua condição periférica, o mesmo é dizer universal, e que teve desde sempre. Para se «cumprir», falta-lhe realizar de novo a adesão à comunidade do mundo.
34 - «Não se deve limitar Deus», como insistia Agostinho da Silva. Podemos estar a diminuí-Lo ou negá-Lo junto de nós, para excessivamente afirmá-Lo no infinito.
35 - Importante é saber se pela pátria podemos continuar rumo ao universal; saber se temos barco, e se o barco leva a toda a parte. Já demos uma volta inteira. Façamos outra mais acima. Pode embarcar quem não tem os pés em nenhum cais, ou quem já chegou a todo o lado?

domingo, 18 de outubro de 2009

O CAMINHO DO CAMINHO, 7

Cynthia Guimarães Taveira


Os artistas visuais e as artes plásticas e as palavras
Os primeiros, auto denominando-se artistas visuais, pertencem certamente ao futuro, o mesmo retratado por Steven Spielberg no filme Relatório Minoritário. Esta saga visual é implacável nos avisos que faz ao perigo da supremacia do sentido da visão face aos outros. Para quem ainda não viu o filme (e que vale mesmo a pena ver), a acção passa-se num futuro. Ou antes em dois futuros, um que acontece naturalmente e o outro previsível, ou seja, visto, em jeito de revelações, por três seres (que pouco têm de humano pela estranha forma de vida) “para psicológicos”, embebidos num liquido (paralelismo subtil com o liquido amniótico), numa condição de êxtase permanente com o senão de viverem num estado parecido com o embrionário (pouco nascidos ainda, portanto). A polícia, nesse filme, utiliza estes três seres para, dessa forma, poderem prever o crime e evitá-lo, e, mais perverso, prenderem o criminoso antes que este cometa o crime, com a certeza indiscutível de que este foi visto no futuro anunciado nas imagens reveladas e partilhadas por uma elite de vigilantes e geradas no cérebro dos três mutantes que nem cabelo têm sequer. A acção começa quando um polícia se vê a si próprio a cometer um crime e aí é iniciada a fuga alucinante, a fuga de um futuro. Um futuro no qual a identificação dos seres humanos é elaborada a partir da íris. Olhando para os cartazes publicitários espalhados em centros comerciais, as personagens desses cartazes, que estão em constante movimento, reconhecem cada uma das pessoas individualmente e dirigem a sua propaganda para um determinado nome, personalizando, assim, as campanhas publicitárias. Uma das muitas ironias do filme está no facto de, a páginas tantas, ou antes a fotogramas tantos, o tal policia fugitivo ter de roubar um olho para que não o identifiquem. E o olho cai e rebola, e escorrega-lhe das mãos para seu desespero e para gargalhada geral do público, que só assim, no ridículo extremo, se apercebe (quando está para isso), da sociedade de loucos em que vivemos, na qual o olho, a imagem descartável e totalitária, nos domina os dias e nos adormece a consciência, essa sim feita de palavras. Claro que o filme é muito bem rematado quando, no final, os três profetas embrionários são enfim salvos desse pesadelo constante das imagens e se refugiam numa casa de campo, toda de madeira, por fora e por dentro também, uma vez que é forrada a estantes, e onde passam o tempo a ler, perto das palavras e longe das imagens. Depois de um filme destes duvido que algum artista queira ser chamado de “artista visual”.

Os segundos são os artistas plásticos. Não sei quem escolheu tal nome mas acertou em cheio, pois a arte contemporânea, na sua grande maioria, é de facto de plástico. Ora o plástico vem do petróleo que, curiosamente, é o chamado “ouro negro”. Imagem invertida do ouro real, de dourado nada tem, de sólido também não. Antes é uma substância viscosa, o ultimo grau da putrefacção e o último grito (talvez desesperado) da moda das matérias-primas. Nada de mais pois há arte, ou antes dita arte, feita com lixo, entulho, latas batidas e ferrugentas, bidões desalmados, todo o género de materiais, do mais podre ao mais que morto, acabando mesmo na contemplação de cadáveres humanos ou na contemplação de animais em agonia. Assim, esse petróleo, pai do plástico, parece ser o nome adequado a esta arte. Tão volátil quanto ele, tão negra e poluidora tão longe desse outro ouro que em termos alquímicos, a chamada Arte Real, é associado ao espírito e à sua corporização e à espiritualização do corpo. É sabido que quanto mais cirurgias plásticas fazem as mulheres mais parecidas umas com as outras ficam e mais vão perdendo a sua identidade e consequentemente a sua alma. A palavra plástico, que gera também plasticidade (como transfiguração da superfície sem contudo perder as propriedades próprias - levando à negação da transformação e transmutação) parece estar condenada a conduzir-nos à morte, até pelos produtos poluentes que gera para o planeta.

O vazio das duas palavras, “visual” e “plástico” é total. Fiquemo-nos por artistas, por pintores, por mestres pintores. Simplesmente, e atentos, viventes nessa nomenclatura antiga, vejamos, ou antes escutemos. Ver é assistir à revelação do óbvio numa atitude passiva. Escutar já nos compromete pois estão em jogo palavras, palavras que ecoam e estimulam o nosso pensar. Aquele que é individual e só nosso.

Só entendemos as artes pictóricas quando, na nossa cabeça, ecoam palavras. Adjectivos na maioria das vezes, pensamentos, associações. Se o objecto de arte for terrivelmente diabólico, aquilo que temos é, no início, um choque quase físico. Uma repulsa natural, quase instintiva. Assim, perante a representação do horror, sobretudo do horror humano, o choque sobrepõe-se à consciência. Perante o belo, o sublime, a representação do maior que nós, a atitude não é de choque horrorizado, antes pausa, contemplação, meditação, desdobramento da obra na nossa alma na nossa consciência, porque tal meditação necessita de palavras e a palavra não é mais do que a consciência, a nossa música, o nosso compasso, fugitivo do abstracto musical porque sempre procurando a precisão, a verdade fiel ao sentimento tido à memória distante que regressa, ao desejo que se instala no futuro.

No misticismo há uma natural relação, que é também uma sobrenatural intuição, com a imagem e a música. Duas linguagens directas e suficientemente abstractas para delas ir retirando ao longo da vida todo um rol de palavras que buscam incessantemente a totalidade semântica desse abstracto revelado. Basta ler uma experiência mística de Dalila P. da Costa e sua interpretação para percebermos que essa experiência é inesgotável como fonte da palavras e sentidos à medida que se caminha pelo tempo.

A palavra é um meio, um modo de tradução mas também um veículo de uma consciência ciente de todas as suas hesitações e a consciência é uma mais-valia pois é ela que nos faz antever, pressentir, intuir, a existência de uma alma. Deste modo a palavra é a consciência das nações, a consciência da identidade de um povo. A prova viva da sua distinção, da sua originalidade, da sua capacidade de transmitir o seu verdadeiro ser. Quando as línguas se deixam empobrecer, degenerar e aglutinar em demasia com outras é uma alma que vai morrendo pois já não tem como comunicar. Exactamente como uma pessoa que em vez de expandir os seus dons os diminua, os faça extinguir, a pouco e pouco, como uma chama que se apaga, e deixe de ser ela por influência ou pressão de um outro indivíduo. As nações são almas, já dizia Fernando Pessoa, e são-no de facto. Volúveis, frágeis, únicas e preciosas. A língua, o seu modo de expressão e a garantia da sua continuidade.

Todas as línguas do mundo dão, provavelmente, todas as tonalidades das almas, suas cores vibrando em sentimentos, seus apelos e angústias. Todas as línguas do mundo serão suficientes para abarcar a alma do mundo?

E a alma está situada no centro do coração. Chegámos, enfim a um comboio útil de palavras: palavra - consciência - alma - coração. Pois é, como dizem as crianças. É curioso porque tendem a dizer “pois é?” em vez de “não é?”, substituindo uma negativa por uma afirmação, juntando-a ao verbo ser. Pois é, e o Espírito Santo que fala pela boca delas sopra, muitas vezes, sob a forma de palavras. Normalmente poucas palavras, mas quase indiscutíveis, certeiras, atingindo em simultâneo o nosso coração e a nossa capacidade de raciocinar. As crianças, em determinadas alturas constatam, olham-nos como se nos despissem com o olhar e dizem a verdade, pela boca delas, palavras vindas de um espírito que lhes é maior. Assim como os loucos, ou ébrios, ou velhos cegos, ou alguém que esteja à margem vivendo uma espécie de semi-consciência. semi-alma, semi-palavras. As margens do mundo observam-no e esperam a oportunidade certa para o mudar…

Pois, é por elas, nesse estado semi, mais vazio que cheio, que a palavra se manifesta de forma poderosa. O Espírito Santo requer um vazio, o tal desapego de si, por quem sopra e a quem é dirigido. Quando o corpo não se mexe, quando está paralisado, quando de nem um movimento ou de uma lágrima é capaz, aquilo que lhe resta são as palavras. As palavras dentro dele, o último reduto, a última forma de consciência. É necessário passar por essa experiência para se compreender a sua força e a forma como elas e a consciência formam um todo.

No yoga dos indianos, a ascese faz-se em crescendo, e esse crescendo é inversamente proporcional à quantidade de imagens que atravessam a nossa mente nos variados estados de meditação. Curiosa fórmula esta num país que vive de imagens e de deuses, de Bollywood’s e de carros pintados. Um país que usa e abusa das imagens mas que, no seu íntimo, parece intuir o factor ilusório dessas imagens e a sua necessidade numa viagem sem que estas sejam, no entanto, um objectivo em si.

As imagens deveriam ser tratadas com pinças, tal a sua delicadeza e tal a capacidade que possuem de adormecer a consciência, ou seja a alma. Vivemos dormindo, poluídos de imagens. Olhamos e não vimos, olhamos e não vivemos, olhamos e não recordamos, por bem lá no fundo não vivermos (a facilidade com que nos esquecemos de um filme, por exemplo, é significativa). Por outro lado a palavra, alma gémea da consciência, tem como característica essa procura do rigor, essa tentativa de acertar em cheio no sentido preciso para o qual tende a consciência. Mas a palavra é mais, é tão só a parte material de uma outra linguagem, aquela que reside no coração. Essa sim a linguagem das aves muitas vezes confundida com trocadilhos alquímicos, confusão em parte alimentada por Fulcanelli. O trocadilho revela a disponibilidade da alma para associar aquilo que aparentemente não é associável, a disponibilidade para o riso, a disponibilidade para trocar os sentidos, uma tendência para o génio. O trocadilho revela todas as hesitações possíveis da alma. Os caminhos semânticos atropelam-se uns nos outros e esta é uma das condições para o entendimento do símbolo. O trocadilho abre portas mas não é a porta. Na Língua dos Pássaros, não há propriamente palavras porque esta é uma pré-linguagem e uma metalinguagem em simultâneo. Uma mãe sabe como o seu bebé se sente, porque sabe, porque dois corações estão unidos. Ou os amantes que sentem em simultâneo sintonizando o pulsar do seu coração. A Língua dos Pássaros é o canto doce do coração. E não há palavras. Mas há consciência e alma e, sobretudo, amor.

A primeiríssima língua é afinal aquela do amor, a mesma com que Deus connosco fala e aquela com que falamos com Ele. Nessa língua não há evocação. Há apenas oração. Na evocação Deus ainda está longe e há que chamá-Lo, na oração caminha-se já com Ele. É na união tão desejada dessas duas consciências, a do alto e a do baixo que é possível o nascimento da arte. Por tudo isto, o visual, o plástico, ao fugirem da consciência e da palavra, nada de novo poderão fazer nascer debaixo do sol. Apenas na palavra e da palavra algo de novo poderá nascer. Até nós.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

PENSANDO À BOLINA, 11

Pedro Sinde

A Casa Albano
Na terra onde vivo há, como em todas as terras, uma casa da sorte onde se vende lotaria e coisas afins, onde se vende a "sorte". O lema destas casas é o de que só sai a sorte a quem joga.

No jogo da vida estamos todos envolvidos, queiramos ou não, joguemos ou não, porque se não jogamos a vida, é ela que joga connosco. Muitas vezes cremos que somos nós a jogá-la e é ela, no entanto, quem joga em nós.

Nunca gostei, porém, da comparação da vida com o jogo, porque sempre me pareceu entrever aí o perigo de a tomarmos por uma coisa lúdica (hoje todos parecem ter como fim último da vida a diversão!), quando o papel do homem é o de ser uma ponte entre o natural e o sobrenatural. Para dizer isto bem dito, nem devia falar em "natural", pois nada na vida o é, só os nossos olhos pobres precisam do descanso da luz sobrenatural para se refugiarem na sombra do natural; assim é que chamamos "natural" àquela parte do sobrenatural com a qual convivemos diariamente. Se víssemos a vida como sobrenatural sempre, isso implicaria uma mudança radical no sentido das nossas vidas; não estamos, todavia, interessados em mudanças destas.
Mas voltemos à Casa Albano; nessa casa onde se vende a taluda, o totoloto, o totobola, o euromilhões e tudo o que se possa pensar nesta gama, também se faz uma outra coisa muito curiosa. Nos seus grandes vidros afixam-se, mesmo ao lado dos números premiados, os anúncios necrológicos; de tal modo que, nas suas montras, as mesmas pessoas procuram os números para ver se lhes saiu a "sorte grande" e o nome do último "sorteado", levemente deliciadas com a certeza de que nunca verão ali o seu nome.

Se a taluda sai a poucos, já aquela outra sorte, essa sim grande, imensa, tremenda, sai a todos. Vejo na Casa Albano, de mãos dadas, a imagem paradoxal da pródiga dama segurando o corno da abundância e a ceifeira terrível de gadanha na mão; ambas sorriem e os transeuntes não sabem se serão os próximos a ganhar o sorteio ou a ser sorteados.

Uma ligação estranhamente profunda parece haver entre ambas, como se filhas do mesmo pai, como se divisão de uma mesma energia, como se dois extremos que se tocassem; enfim, uma pescadinha de rabo na boca, que é o nome que o povo português dá à hermética serpente Ouroboros.

Ao passar ali todos os dias, só eu pareço, no entanto, não querer nada nem com uma nem com outra, discretamente acelerando o passo no outro lado da rua.
texto originalmente publicado no blogue Maranos

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

ANOTAÇÕES PESSOAIS, 31

António Carlos Carvalho

Quando, há uma semana, li a notícia da morte daquele que foi o último chefe da inssurreição no ghetto de Varsóvia, lembrei-me do autor que escreveu sobre ele uma página admirável – o escritor italiano Erri De Luca.
Por coincidência, foram entretanto publicados mais dois títulos deste autor: «O dia antes da felicidade» (Bertrand) e «Caroço de azeitona» (Assírio & Alvim). O primeiro, um romance, é de algum modo a continuação de «Montedidio» (Âmbar), ou seja, a narrativa da infância e da adolescência de um menino em Nápoles, a cidade natal do escritor, e a descoberta dos livros e da sabedoria da vida; o segundo, é uma recolha de textos sobre temas bíblicos, escritos por um homem que não é crente nem religioso, segundo diz, mas que nos espantam pelo respeito e até mesmo pela fidelidade que o autor demonstra escrevendo-os assim.
(E eu, escrevendo isto, faço-o de propósito no dia em que o último romance do Nobel português recebe honras antecipadas – para salientar a abismal diferença entre o coração aberto de um Erri De Luca e o rancor disfarçado de sarcasmo de um Saramago).
Em 2003, quando foi lançada a edição portuguesa de «Montedidio», Erri De Luca veio a Lisboa e eu tive a oportunidade (o prazer e a honra) de o entrevistar no Instituto Italiano. Conhecia as obras dele porque a antiga proprietária da Livraria Francesa, Béatrice Montamat, me chamou a atenção, no final dos anos 90, para os livros desse escritor italiano, para mim até então um completo desconhecido.
Fiquei logo apanhado, sobretudo pelas reflexões que ele fazia sobre temas bíblicos.
Convém referir que este napolitano nascido em 1950, depois de se ter envolvido em movimentos políticos na sua juventude, foi operário, trabalhou na construção civil em vários países. Um dia, decidiu aprender hebraico para ler e entender melhor a Bíblia. A partir daí, levantava-se todos os dias uma hora mais cedo para ler e traduzir mais uma passagem bíblica , que levava consigo, na memória, para o estaleiro das obras -- continua a fazer o mesmo ainda hoje, que já não é operário.

Erri De Luca

Quando fiquei frente a frente com ele, numa sala do Instituto, vi que tinha diante de mim um homem alto, de olhos azuis, seco de carnes – e mãos calejadas. As mãos do operário e do escritor. E as mãos do motorista de camiões de ajuda humanitária, durante cinco anos, na Bósnia, em plena guerra na ex-Jugoslávia.
Falámos dos livros dele, de «Montedidio», claro, mas sobretudo dos interesses que tínhamos em comum. Saí dali francamente impressionado. É tão raro ver um Homem por detrás do escritor. Um Homem solitário, sim – vive sozinho numa casa nos arredores de Roma que ele próprio reconstruiu --, mas também solidário. Com os outros e com a letra das Escrituras que lê, traduz e estuda.
Um Homem capaz de escrever:
«O hebraico das Santas Escrituras possui um magro vocabulário, pouco mais de cinco mil palavras. Essa pobreza contém uma intensidade de sentido que se perde muitas vezes nas traduções, quando um único verbo hebraico é deslocado em diversos sinónimos, traduzido com sentidos diferentes. Os verbos do trabalho e da guarda da terra, *avad* e *shamar*, são os mesmos, terrivelmente os mesmos, que os do serviço devido a Deus. Para esta escritura antiga, trabalhar a terra e servi-la são a mesmo palavra, a mesma solicitude devida ao serviço sagrado. (...) O hebraico antigo insiste em deixar juntos céu e terra, sagrado e solo, por intermédio de um verbo que os contém aos dois. A terra é confiada como escritura transmitida. Transmite-se alimento e sacramento com o mesmo verbo (...) Nós instalámo-nos bem longe desta escritura. Não voltaremos jamais ao solo com verbos semelhantes aos que são devidos a Deus. Dissociámos *avad* e *shamar*, servir e guardar, para podermos explorar a terra sem pensarmos na nossa condição de pulgas parasitas do planeta, mas tornando-nos senhores dele. O que foi certamente eficaz para os negócios mas, se tentarmos saber em que ponto nos distanciámos do sentimento sagrado de habitantes de um solo, é necessário regressarmos aos dois verbos hebraicos e sentir o golpe seco pelo qual separámos o céu da terra.»
«Ler as Santas Escrituras é obedecer a uma prioridade da escuta. Inauguro os meus despertares com um punhado de versículos e o curso da jornada toma assim o seu fio inicial. Posso em seguida deslizar o resto do tempo de acordo com as futilidades das minhas ocupações. Entretanto, retive para mim uma parte de palavras duras, um caroço de azeitona para virar e revirar na minha boca.»
«(...) Na linhagem dos seus antepassados havia uma progenitora cananeia, Tamar, e uma moabita, Ruth, porque o Messias é um mestiço e não um puro-sangue. (...) Se ele nascesse hoje, estaria num barco de imigrados (...) Depois dele, mais ninguém é residente, somos todos hóspedes à espera de visto. Nós, os bem alimentados do Ocidente, somos a coluna de estrangeiros em fila diante do último guichet.»
«Enquanto, a cada dia que passa, eu puder ficar debruçado nem que seja sobre uma única linha destas Escrituras, não consigo desfazer-me da surpresa de estar vivo.»
Além dos livros referidos de Erri De Luca, em Portugal estão ainda publicados «Três Cavalos» (Âmbar) e «Em Nome da Mãe» (Quetzal).
Resta-me a esperança de que os editores, e sobretudo os leitores, percebam que estamos perante um dos escritores mais importantes da nossa época – mesmo sem Nobel, ou talvez por isso mesmo.
Quanto a mim, agradeço a Deus o privilégio de ser seu contemporâneo e de um dia, ainda que fugazmente, o ter olhado nos olhos e visto um Homem sério e humilde.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

NO CORAÇÃO DA ARTE, 25

Cynthia Guimarães Taveira


Mundos
Havia o dia-a-dia e a vida percorrida. Depois havia a impressão dela. Uma impressão pictórica. Não havia estilo nem estilização como estigma. Todo o estilo era involuntário, toda a estilização o resultado da exigência do símbolo. O mundo onírico diurno acompanhava os passos do pintor. O mar era o mar e a sua pintura. A janela rendilhada a pedra viva dentro e fora dela. O sonho, da noite, vivia no dia vibrando na tela. Lançava redes entre mundos, capturava a luz da parede caiada e, do outro lado, captava a luz interior. Fundia-as nesse branco titânio com gotas salgadas de amarelo-limão. O pincel giratório deixava remoinhos, moendo os pigmentos até que fossem um só. Dessa fusão transbordava o calor. Todo aquele que tinha passado primeiro do coração para as mãos, depois, das mãos para o pincel e, por fim, descansando agitado na tela. Dizem que, quem se aproximar dela, sente esse calor. Os pintores são caçadores de luz, a tela, a sua alma estendida pela eternidade.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

AFORISMOS, 6

Eduardo Aroso

26 - O olhar de uma criança: altar de Deus.
27 - Pôr-do-sol: aceitação do feminino.
28 - Ressurgimento (ressurreição) da Terra: não ajudes à sua aniquilação, que do ressurgimento ela se encarrega!
29 - São muitos os exemplos que nos dizem que, em última instância, o rumo superior da História escapa sempre àquilo que os Homens gostariam que de todo ela fosse… Neste ponto, encontramos também o sentido do adágio «Deus escreve direito por linhas tortas».
30 - Quando a vida me permite e simultaneamente me impele a calcorrear o país, sinto ainda um pulsar medular, e uma parece-que-perdida imagem que de repente me rodeia como um fantasma. É a alma da nossa gente, um rosto de dentro com um íntimo de sobrevivência, mas acrescentado na virtude a dizer que não renega. O outro rosto, o de fora, sobreposto, a derreter-se no artificialismo imposto. E neste aperto recordo sempre, comovido, os versos de Miguel Torga «Ah, meu povo traído, /Mansa colmeia/A que ninguém colhe o mel!...»

domingo, 11 de outubro de 2009

CICLO DE SIMPÓSIOS SOBRE OS TEOREMAS DO «57» RETOMADO A 21 DE NOVEMBRO

57. O ciclo de simpósios dedicado aos 12 Teoremas do 57 - Actualidade dos Teoremas do Movimento de Cultura Portuguesa, que os Cadernos de Filosofia Extravagante têm vindo a organizar, ao longo do corrente ano, na Livraria Fonte de Letras, em Montemor-o-Novo, regressa no próximo dia 21 Novembro, às 15 horas. Será o terceiro encontro desta série, e nele participarão, como apresentadores, António Carlos Carvalho (teorema do Teatro), Cynthia Guimarães Taveira (teorema das Artes Plásticas) e Luís Paixão (teorema da Arquitectura).

Cada interlocutor convidado apresentará durante dez minutos o seu teorema.
Finda a apresentação iniciar-se-á o debate alargado a todos os convivas do simpósio.
A anteceder a realização do simpósio, os teoremas respectivos serão aqui publicados.

EXTRAVAGÂNCIAS, 34




Guerreiro do Fim
Eduardo Aroso
(poema nascido para O Bar do Ossian)

Fecundou-se o mito,
Horizontes de nevoeiro.
Clama a alma num grito
O regresso do amor
Que venha ou não de espada,
Mas que seja guerreiro
Da santa guerra lavrada
Dor entre o não e o sim.
Mas será D. Sebastião
Ou Viriato do fim?

Viseu, 3-10-09

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

OS POETAS LUSÍADAS, 28



D. DINIZ

Na noite escreve um seu Cantar de Amigo
O plantador de naus a haver,
E ouve um silencio murmuro consigo:
É o rumor dos pinhaes que, como um trigo
De Imperio, ondulam sem se poder ver.

Arroio, esse cantar, jovem e puro,
Busca o Oceano por achar;
E a falla dos pinhaes, marulho obscuro,
É o som presente d’esse mar futuro,
É a voz da terra anciando pelo mar.

[09-02-1934]

Fernando Pessoa

EXTRAVAGÂNCIAS, 33

Álvaro Ribeiro visto por Romana Valente Pinho*
“Tudo depende não de aclimatar, não de continuar, mas de recomeçar uma tradição; tudo depende da eleição de um ponto de partida e da acção de um escol que venha a revelar em actual expressão ontológica o pensamento implícito nos documentos teológicos, políticos e literários que assinalam os decisivos passos da vida do nosso povo, e que venha a formular em sistema ou sistemas a filosofia própria da fisionomia nacional”.
Álvaro Ribeiro, O Problema da Filosofia Portuguesa

“Porque não é de filosofia em Portugal mas de filosofia portuguesa que a nossa cultura verdadeiramente carece”.
Álvaro Ribeiro, O Problema da Filosofia Portuguesa

Apontamento Biográfico
Álvaro Ribeiro nasceu, na cidade do Porto, no dia 1 de Março de 1905.
Estudou na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, onde foi aluno de Leonardo Coimbra (1883-1936), e licenciou-se, na mesma instituição, em 1931.
Iniciou-se, desde muito cedo, na arte de filosofar. Julgava até que se aprimorara em tal arte no convívio da Renascença Portuguesa e nas tertúlias filosófico-literárias que pululavam pelos cafés portuenses. Expressões tão vivas e fiéis do verdadeiro indagar filosófico, desprendidas das relações formais e académicas que, na concepção alvarina, não coincidem com o vero interesse pela Filosofia.
É considerado o fundador do mui polémico grupo da Filosofia Portuguesa. Do qual fazem parte, entre outros, António Quadros (1923-1993), Afonso Botelho (1919-1996), Orlando Vitorino (1922-2003), Pinharanda Gomes (1939), António Telmo (1927) e António Braz Teixeira (1936).
Deixou uma vasta obra dedicada, essencialmente, à Filosofia e à Cultura e Literatura Portuguesa.
Morreu, em Lisboa, no dia 9 de Outubro de 1981.

Apontamento Crítico
Ao lado de José Marinho (1904-1975), Álvaro Ribeiro é um dos maiores discípulos de Leonardo Coimbra. Poder-se-á dizer que deste recebeu o estímulo para a reflexão filosófica e para o culto da filosofia em lato senso, sem ser necessária a frequência de escolas ou universidades. Assim como o seu colega da Faculdade de Letras do Porto - José Marinho – e como Teixeira de Pascoaes (1877-1952), Álvaro Ribeiro é um defensor acérrimo da singularidade da cultura e do pensamento português. Considera-o uma questão situada, concreta e objectiva. Crê até que o carácter filosófico do nosso pensamento se revela, sobretudo, na literatura e na poesia.

Avesso ao espírito moderno, ao academismo, ao positivismo e ao racionalismo de um ponto de vista genérico, o pensador portuense defende, ao invés, uma linha de orientação filosófica que se sustenta no romantismo, na perpetuação da tradição portuguesa, na reflexão detida da fisionomia filosófico-antropológica do povo lusitano que, na sua óptica, é tão peculiar e tão enigmática. Tal fisionomia dever-se-á perscrutar através da palavra, da linguagem – instrumento sagrado. No fundo, o primeiro passo do filósofo é tornar-se filólogo, ou seja, atentar para a cifra misteriosa que está subjacente à nossa fala, à nossa imaginação e ao nosso pensamento. A filosofia será, então, no seu ponto de vista, a arte da palavra. A qual, em tempos remotos, era apenas acessível aos sacerdotes. Também por isso é que, na obra de Álvaro Ribeiro, a filosofia tem uma estreita ligação com a teologia, com a religião e com a simbólica. Ao filósofo cabe, assim, pela análise da palavra ou da linguagem (que é mais do que uma simples lógica linguística e formal), revelar o que está velado; desocultar o que está oculto até aceder à ideia de Deus, ao conceito de Absoluto. Afinal de contas, Álvaro era assumidamente teísta e esotérico, considerava até o ateísmo como uma espécie de analfabetismo.

A antropologia constitui-se, assim, como a primeira das disciplinas filosóficas, na medida em que é a ciência que se debruça sobre o pensamento humano, sobre a razão animada. Neste aspecto, e apesar de propor uma nova interpretação de Aristóteles, distancia-se da máxima aristotélica “o homem é um animal racional” que, devido a Charles Darwin (1809-1882), foi exponencialmente tratada e reformulada. Álvaro Ribeiro, por sua vez, acentua o carácter espiritual e animado da razão humana. No fundo, o pensamento alvarino centra-se na apologia da filosofia como maiêutica, como propedêutica pedagógica e como orientação ético-moral. Não nos esqueçamos que, tanto em Estudos Gerais como n’ A Razão Animada – Sumário de Antropologia, concebe um programa para os estudantes de filosofia, no qual esquematiza e apresenta as disciplinas fundamentais do método filosófico.

Numa das suas obras mais emblemáticas – O Problema da Filosofia Portuguesa -, Álvaro Ribeiro pretende questionar os obstáculos que se colocam à reflexão especulativa e filosófica dos portugueses, bem como a análise da situação da filosofia em Portugal. Na sua perspectiva, os pensadores portugueses da contemporaneidade não conseguem descodificar o problema da cisão entre a filosofia moderna e a filosofia clássica. Portugal, ao deixar-se guiar pelas influências estrangeiras, desdenhou a antiguidade e abraçou as luzes. Portugal afastara-se, assim, do pensamento clássico e das raízes do próprio processo filosófico. Para inverter tal situação, Álvaro Ribeiro propõe uma reaproximação a Aristóteles, uma hermenêutica cuidada e militante deste filósofo grego.

Bibliografia Indicativa
O Problema da Filosofia Portuguesa (1943)
Leonardo Coimbra (1945)
Sampaio Bruno (1947)
Os positivistas (1951)
Apologia e Filosofia (1953)
A Arte de Filosofar (1955)
A Razão Animada (1957)
Escola Formal (1959)
Estudos Gerais (1961)
Liceu Aristotélico (1962)
Escritores Doutrinados (1965)
A Literatura de José Régio (1969)
Uma Coisa que Pensa (1975)
Memórias de Letrado (1977-1980, 3 volumes)
____________
* artigo originalmente publicado aqui.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

«O PLUTOCRATA» É LANÇADO EM SESIMBRA A 28 DE NOVEMBRO

Orlando. O Plutocrata, de Ernesto Palma (pseudónimo de Orlando Vitorino) foi uma das últimas obras que o autor de Refutação da Filosofia Triunfante nos deixou. Inicialmente saído a lume em 1996, com o selo da Ledo, o livro irá agora reaparecer numa reedição da Serra d’Ossa. O lançamento é no próximo dia 28 de Novembro, sábado, pelas 15 horas, na Biblioteca Municipal de Sesimbra. A apresentação da obra estará a cargo de Elísio Gala, do círculo dos Cadernos, que também a prefacia.
Mas quem é O Plutocrata? A palavra a Ernesto Palma: “Plutocrata é o homem que alia, a uma grande disponibilidade de dinheiro, o poder de com ela dominar a sociedade, não à maneira do político que a oprime ou liberta, nem à do militar que a disciplina, nem à do clérigo que a apascenta. O domínio que o plutocrata exerce é o de definir as hierarquias que compõem a sociedade, preservar as posições ou planos que tem cada hierarquia, designar as pessoas que ocupam essas posições.”

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

NO CORAÇÃO DA ARTE, 24

Cynthia Guimarães Taveira




A Vida
Foram precisos muitos anos para reparar nele. Ao fim de inúmeras repetições ele foi-se revelando. Havia um padrão escondido ao longo da sua vida. Tão forte como o sussurro do olhar. Em momentos difíceis, psíquica ou fisicamente, dava por si a olhar um quadro. Qualquer que fosse. Pendurado na sua sala ou pendurado numa loja de decoração por onde passasse. Olhava sem ver. Olhava sem dar por isso. Até que um dia, num momento de angústia, depois de lhe faltar o ar, olhando numa montra uma paisagem mal pintada, se lembrou das outras vezes em que tinha feito o mesmo. Percebeu que tinha criado um símbolo interior, despropositadamente. Um quadro, qualquer que fosse era a própria vida. Onde quer que estivesse. Um balão de oxigénio no qual penetrava e no qual se salvava. Percebeu a importância da pintura na sua vida. Enquanto a sua pintura já tinha percebido há muito a importância dele. Apenas com ele passava existir. Sempre existira uma dependência silenciosa entre ambos.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

ANOTAÇÕES PESSOAIS, 30

António Carlos Carvalho

Quiseram os Fados que o meu sexto neto nascesse neste dia 6, em que passam dez anos sobre o desaparecimento físico de Amália, essa mulher que deu para sempre voz e alma ao estranho Fado que nos envolve. A minha filha Madalena deu à luz, lá longe em Inglaterra, um menino a quem ela e o Miguel resolveram chamar Sebastião ou Sebastian, uma vez que o menino terá dupla nacionalidade.
Quando soube da intenção de lhe darem esse nome, encolhi-me, hesitei: Sebastião é um nome com um peso excessivo, nome de santo-mártir (cravado de setas) e de rei controverso, para uns louco e efeminado, para outros rei eterno, desejado e encoberto, como convém a um messias.

Dom Sebastião, de Cristóvão de Morais

Mas a decisão era dos pais, não dos avós. Assim seja. Assim é.

Pelo menos tem um nome original na família, não corre o risco de o confundirem.
Mas não posso deixar de pensar que os nomes trazem consigo uma carga que nos ultrapassa ou nos esmaga.
Pergunto-me agora o que esperará este menino nascido em terras do rei Artur mas sem nenhum Merlim para o guiar ao encontro do seu destino.
Haverá uma Excalibur cravada que só ele conseguirá extrair da pedra ou da bigorna?
Ou somente um jogo de computador ainda mais realista para lhe trocar os sonhos por simulações no ecrã?
Só sei que também este Sebastião nasceu em tempos de crise maior e que desta vez não haverá um Camões para lhe ler o poema do destino de Portugal.
Aliás, nem sei se ele algum dia se sentirá português, ou inglês, ou anglo-português, ou simplesmente «cidadão global», seja lá isso o que for.
De qualquer modo, meu neto Sebastião, sê bem vindo à Vida neste mundo.
Um instante antes de nasceres, um anjo tocou-te no lábio e apagou-te a memória de tudo o que aprendeste no ventre de tua Mãe.
Agora terás de reaprender tudo aqui, com os pés na Terra e os olhos do Coração postos no Céu – de onde vieste e para onde voltarás.
Pode ser que, um dia, descubras o que o também bilingue Pessoa dizia:


«Se tivermos de ter uma língua natural universal, essa língua será o Inglês; para o que queremos aprender leremos Inglês; para o que queremos sentir, Português. Para o que queremos ensinar, falaremos Inglês; Português para o que queremos dizer.»

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

AFORISMOS, 5

Eduardo Aroso

21 - Novas gerações – pássaros que devem ter mais duas asas.
22 - Os que repartem a noite entre o perfume do descanso e as raízes maceradas da dor, escutam nitidamente o primeiro cantar do galo.
23 - Na pátria coexistem vários níveis de ser, estratos diversos, tempos sobre tempos. Todavia, o seu mais alto sentido de realização radica, na sua flor mais pura, na montanha mais elevada, no ponto mais imaterial. Aí concebemos a Ilha dos Amores, a Ilha Universal que, realizando o melhor de cada habitante e dando a todos o melhor de si, deixa de ser ilha para se tornar no paraíso sem isolamento.
24 - O sapato perfeitamente ajustado ao pé. Eis o sentido do nome profético Bandarra. Temos andado com sucessivos e longos desajustes ao nosso pé, leia-se forma de vida do ser e da nação, e, assim sendo, Bandarra continuará a ser ideal de perfeição nacional.
25 - «Guardado está o bocado para quem o há-de comer». A sabedoria popular-tradicional opõe-se às políticas actuais. O paradoxo surge pela mão de quem devendo culturalmente alimentar e tornar consciente esse conhecimento estratificado da madre experiência ao longo dos tempos, governa não só ignorando o facto, como lhe impõe, tantas vezes, uma espécie de contranatura que põe a nu a ineficácia de acções falhadas. O «guardado está o bocado para quem o há-de comer» é comido de imediato por quem o deveria distribuir, ficando o caldo de ervas amargas, cuja amargura parece não ser suficiente para questionar que pão é que andamos a comer.

domingo, 4 de outubro de 2009

NA PRÓXIMA QUINTA-FEIRA: TEIXEIRA DE PASCOAES EVOCADO EM LISBOA

Novidade. O quarto número da revista Nova Águia, subordinado ao tema Pascoaes, Portugal e a Europa, e no qual colaboram alguns nomes do círculo dos Cadernos de Filosofia Extravagante, é lançado já no próximo dia 8, quinta-feira, no Anfiteatro 1 da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, numa sessão que tem início às 14h30 e contará com a presença de autores como Miguel Real, Paulo Borges, Pinharanda Gomes e Renato Epifânio, entre outros. Na ocasião, serão também apresentadas as obras A Experiência Reflexiva: Estudos Sobre o Pensamento Luso-Brasileiro, de António Braz Teixeira, e O Teísmo Medieval: Santo Anselmo e João Duns Escoto, de Maria Leonor L. O. Xavier. (Pode consultar o programa clicando na imagem para a ampliar.)
Entretanto, ainda no mês em curso, mas já no dia 31, pelas 15h00, realiza-se na Biblioteca Muncipal de Sesimbra uma outra sessão de apresentação deste novo número da Nova Águia, que integra um colóquio sobre o vate de Gatão. Este Encontro com Pascoaes - assim se denomina o evento - contará com a presença de António Cândido Franco, António Carlos Carvalho, António Telmo, Luís Paixão, Pedro Martins, Renato Epifânio e Rodrigo Sobral Cunha.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

PENSANDO À BOLINA, 10

Pedro Sinde


Da não existência da filosofia portuguesa
Não há filosofia portuguesa. É um dado evidente. É quase um facto. Basta olhar para os autores da filosofia portuguesa para ver que ela não existe. Vejamos.

Sampaio Bruno é um gnóstico que trata as ideias platónicas como Aristóteles estudaria uma planta (não nos fala ele na eclosão da ideia na alma do génio?); e, como se não bastasse, acredita que a humanidade inteira será um dia o messias, o D. Sebastião esperado.

Leonardo Coimbra rejeita todos os sistemas de filosofia como formas de "cousismo", isto é, como momentos de paragem do movimento e propõe uma filosofia que é a sua própria negação: uma filosofia do movimento, em que cada nova forma supera a anterior. Deste modo recusa implicitamente a existência de sistemas, a não ser como momentos provisórios. Álvaro Ribeiro propõe uma filosofia que é uma teologia, um caminho para Deus, um caminho de santidade; os que só vêem à superfície chamam-lhe, para o denegrir, neo-aristotélico, não vêem que isso é apenas a capa sob a qual se esconde um pensamento tremendamente revolucionário.José Marinho é um místico de uma lucidez extrema, mas de uma lucidez que tem pudor em mostrar-se como tal e, por isso, nunca edificaria um sistema. Agostinho da Silva, enfim, foi o que foi, ninguém sabe o que foi e, por isso, chamam-lhe comunista, monárquico, anarquista ou franciscano, budista, taoísta. Tudo isso cabia na sua alma imensa, mas ele mesmo não era nada disso; acreditava no quinto império e entendia que os portugueses tinham por missão mostrá-lo ao mundo.

É por isso que há dois tipos de inimigos da filosofia portuguesa: alguns dos que dizem que ela existe e todos os que dizem que ela não existe. Os primeiros tentam encontrar um sistema e teses que dêem unidade à diversidade magnífica, como se dissessem que todas as plantas têm tronco; os segundos comparam-na com o pensamento sistemático alemão ou francês e não encontram nenhum sistema de filosofia português; e têm razão, porque eles chamam filosofia precisamente ao que vêem na Alemanha, na França, em Itália e, agora muito em voga, nos Estados Unidos.

A verdade é que a filosofia portuguesa não tem nada a ver com isso e é desta perspectiva que podemos dizer que ela não existe, pois, graças a Deus, não há um sistema de filosofia portuguesa.

Agora vou dizer, só na aparência, o contrário do que disse: há filosofia portuguesa, é evidentíssimo que há, mas ela não pode ser pensada a partir dos moldes habituais. A nossa filosofia é aquela que, como diz quem chamou a atenção para ela – Álvaro Ribeiro –, está escondida na nossa literatura, na nossa arte, na nossa arquitectura, na nossa paisagem, no nosso mar, na nossa sabedoria popular e até nos nossos filósofos. Poderia ter-lhe chamado pensamento português ou tradição portuguesa, mas com isso não teria concitado a atenção à volta do tema; teria sido uma intervenção mais ou menos inócua. Ao chamar-lhe filosofia portuguesa conseguiu irritar a academia e isso foi bom para que as águas se agitassem.

A filosofia portuguesa é uma floresta muito variada, todos os seus autores têm a lucidez de saber que não podem edificar um sistema. A filosofia portuguesa é a mesma dos nossos descobridores: partem nas caravelas do pensamento e vão vendo o que lhes aparece nessa aventura; estão em movimento e só desse modo vão descobrindo os brasis, as índias e parece que até as austrálias da alma; num momento aproximam-se daqui e noutro dali, mas sabem que não são nem daqui nem dali. Não é à toa que os portugueses saíram de Portugal assim que o conquistaram. O português é um viajante, um peregrino e, por isso, quando pensa o mundo, isto é, quando filosofa, é como se navegasse.

Assusta-me ver a filosofia portuguesa nas universidades. Tenho a esperança de que, apesar disso, nunca cheguem a inventar um sistema de filosofia portuguesa, porque enquanto não houver sistema haverá perguntas, quando houver sistema haverá respostas. Prefiro a beleza do perguntar à estultice do responder, quer dizer, do julgar que se sabe ao ponto de ter respostas; porque, como os nossos nobres navegadores, estamos a procurar e, assim que descobrimos o que procurávamos, logo partimos para outro lugar. É preferível a cegueira de achar que não existe filosofia portuguesa, ao acreditar que ela existe e querer enfiá-la num corpete, retirar-lhe aquilo que fundamentalmente a caracteriza: o amor da liberdade de pensar e até de se contradizer, se for caso disso.

texto originalmente publicado no blogue Maranos

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

NO CORAÇÃO DA ARTE, 23

Cynthia Guimarães Taveira




Dias
Outros dias, pinta o pintor. Lua, outra lua, um luar e uma aurora. Não mede os dias em que pinta. Passa-os pelo pincel. Alisa-os na tela.
Outros dias que não os nossos. Assim presos sem passarem, num quadrado de ilusão. Pinta outros dias, dias que nunca existiram, que nunca passaram, dias longe dos dias. Pinta-os num outro horizonte, na outra margem da vida, aquela do sonho. Dias e noites assombrosas e guerras que nelas houve, e olhares que neles se cruzaram. Súbitas flores irrompendo na multidão dos sonhos à beira de um universo novo. Pinta-os devagar e deixa-os estar para sempre quietos, janelas sobre outras histórias nas paredes da sala, ligando lugares equidistantes com a facilidade de um olhar.