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terça-feira, 21 de julho de 2009

EXTRAVAGÂNCIAS, 23

Pinharanda Gomes
O testemunho de um (seu) leitor
Pedro Sinde
Pinharanda Gomes é uma alma que não precisou de Universidade porque é universal, não precisou de Faculdade porque já é dotado dela. Num tempo em que a Universidade se opõe à Cultura – segundo a acepção de Álvaro Ribeiro de que só é cultura aquilo que pressupõe um culto – nada haveria a aprender por uma alma que se situa tão longe, tão acima, do que hoje nomeamos de Culture (à francesa ou à americana). Que difícil e heróica batalha a de permanecer, tão discretamente, erguido num meio tão hostil, que não reconhece nada do que no seu território nasce, como uma mãe que rejeitasse o filho à nascença por não o reconhecer como seu!
Sabemos que a batalha só termina quando o inimigo se apodera do estandarte; graças a Deus, o estandarte permanece intacto, pois eles não sabem reconhecê-lo. Por muito que atinjam os porta-estandarte, não sabem reconhecer o estandarte. E, hoje, este está distribuído por homens valorosos que bem o guardam. Seria (?) fácil ceder; ceder um ideal para conquistar um lugar no Ensino, ceder outro para conquistar um lugar na Política, ou outro para conquistar um lugar na Igreja. Difícil é permanecer e dar a sua vida, consciente de uma missão mais elevada do que um mero posto social: a missão hoje faz-se pela omissão.
Há algo que desde sempre me intrigou: o que leva um homem a escrever milhares de páginas? É claro que a mesma pergunta poderia ser feita quando um homem escreve apenas três páginas ou três linhas; mas quando escreve milhares de páginas, tem de haver um motivo muito forte que sustente essa dedicação. Seria interessante descobrir, pela dedicação, a indicação que supra ou subjaz à escrita.
Se, perante a obra de um romancista que escreva muito mas apenas para entreter o leitor – e dizemos entre-ter como quem diz reter –, fizermos essa pergunta, a resposta é fácil de ver, pois pelo fruto se vê a árvore; e o motivo aí jaz ou subjaz de modo mais ou menos obscuro e quase sempre de modo subconsciente ao romancista.
Este não é o caso de alguém que escreva consciente de que se remete a um público escasso, pois não busca notoriedade ou, pelo menos, não a busca primacialmente. O motivo que rege a sua escrita tem, portanto, de ser necessariamente outro. O caso de Pinharanda Gomes parece ser este, pois escreve no seio de uma comunidade, onde impera uma ambiência que não faz ressonância com a ideia que preside aos seus escritos, e onde, para além disso, esta ambiência aparece de modo desarmonioso. É o que se passa num mundo, num país, numa pessoa que, como um rio, corre impetuosamente – e cada vez mais impetuoso é o seu correr – para a tão ansiada foz. O caminho porém, para Pinharanda, não é o da foz mas o da nascente.
Pinharanda é efluente de um ribeiro: e só por um manso ribeiro pode o homem ascender com menos esforço à nascente, à fonte de onde ele brota; se ­dizemos com menos esforço, é porque a ascensão requer sempre esforço, o esforço que se oponha à natural ou artificial queda que, artificial ou naturalmente, vivemos ou nos deixamos viver.
Mantenhamos a pergunta que fizemos acima e procuremos no estilo da sua escrita. Se interrogarmos esse estilo, segundo o preceito alvarino de que a aquisição de estilo próprio demonstra a maturidade, a independência e a liberdade do escritor, se interrogarmos pelo estilo, dizíamos, teremos de reconhecer que ele nos dá a sensação nítida de que se oculta por trás dele um espírito inquieto – ainda em sentido alvarino.
O seu estilo rigoroso, quase ascético, na busca constante do étimo, remetendo a Filosofia à Filologia, oculta, mais do que mostra, a inquietação de quem se esforça por ir à fonte da palavra, do sentido. Não poderíamos, contudo, adjectivar a sua escrita de clara. O esforço pelo rigor e pela sobriedade, que obriga o leitor a seguir gradativa e evolutivamente a sua leitura, com a intenção de desbastar na palavra aqueles apêndices com que a degenerescência da língua a encobre, acaba, todavia, por tantas vezes apor-lhe outros tantos apêndices.
É precisamente este ponto que me intriga e que tantas vezes tem suscitado em mim uma outra questão: o seu estilo, de uma racionalidade ‘excessivamente’ abstracta, funciona como um leito que orienta um rio, um ímpeto místico, que, de outro modo, seguiria desgovernado? Ou, pelo contrário, é uma prisão, uma barragem que se impõe a si mesmo alguém que, assustado, sente o ímpeto desse caudal profundo?
A questão é arrojada, mas honesta, pois a formulo tantas vezes na leitura dos seus livros. Se o que eu interrogo aqui é arrojado, seria, todavia, desonesto responder, ter a pretensão e a rudeza de analisar, retalhando. A questão que levanto refere-se à Vida, à Vida com v maiúsculo, àquele ímpeto que o homem oculta em si, àquele fogo divino cuja percepção, intuição ou visão nos pode lançar no temor e no tremor ou, pelo contrário, impelir a altas e valorosas conquistas. Poucos são aqueles que dele se apercebem e menos ainda aqueles que a ele reagem e respondem com a coragem devida e pedida. Da leitura dos seus livros decorre sempre, para mim, a sensação de que Pinharanda tem essa veia mística. Mas toda a questão estaria em saber, aceitando este pressuposto, se há a assumpção dessa veia, regularizando assim o caudal que, de outro modo, correria, anárquico, quer dizer, sem um norte; ou então se há na sua atitude uma defesa que, assim, não deixasse o caudal correr livremente, com aquela liberdade de que o espírito é dotado, soprando onde quiser. Pinharanda aparece-me, está visto, como o coração de místico cuja cabeça recusa; recusa, tenho a impressão, porque sente a força, o ímpeto, a verdade e a luz com que esse ‘lado’ de si o habita. Estará a minha impressão certa?
Entre a vastíssima obra de Pinharanda Gomes, por entre a sua espantosa erudição, há algo de essencial para lá das questões históricas, linguísticas e filosóficas, e é a esse algo, inapreensível para mim até hoje, que me refiro. Há algo que rege a sua obra de serviço e sacrifício a uma Pátria tão ingrata, nesta fase de obscurantismo, em que os homens, que ainda restam "de pé no meio das ruínas" (segundo a expressão de Julius Evola, retirada, creio, de Ernesto Jünger), vivem isolados aqui e ali em ilhas: a época é de defesa – a cada época a sua estratégia.
Estou convencido de que em algumas páginas intensas, profundas e fecundas como grão de mostarda, esta dúvida teria resposta por parte de Pinharanda. É um pedido que aqui faço publicamente, um pedido de um texto que retivesse nitidamente o núcleo e só o núcleo do seu pensamento; não uma síntese, essa o leitor que a faça, mas aquela essência que as palavras tantas vezes cobrem mais do que descobrem.

Um exemplo
O que viu o seu espírito na teologia da saudade? Que porta se abriria em Portugal por uma Igreja que desse ao povo o que é do povo, como quem dá "a Deus o que é de Deus"? O nosso povo é saudade, e como saudade sente a presença e a simultânea ausência de Deus. Caberia ao clero profundar este tema, dar-lhe vida, enchê-lo de alma. Mas qual clero?
Seria essa a direcção que poderia apontar uma teologia que reconhecesse a Saudade na Trindade, naquela "tripartição em que ela é factor ôntico (inerente a algum ser), factor cósmico (inerente ao ser no mundo enquanto universo) e factor antropológico (inerente ao ser do homem no mundo). Essa tripartição advoga uma comunicação entre as três partes, comunicação que não há necessidade de colocar fora do acto pelo qual melhor entendemos efectuar uniões de substâncias diferentes, a religião" (daquele livro com o modesto título Introdução à Saudade, de Dalila Pereira da Costa e Pinharanda Gomes, Porto, 1976, p. 197). Como não reconhecer aqui uma analogia com as Três Pessoas da Santíssima Trindade?
E como não reconhecer a Parábola do Filho Pródigo na justificação dada por Pinharanda à frase acima citada? "A legitimidade do juízo é inquirível mas verificável: nenhuma individuação se garante sem prévio ou posterior recurso a uma unição; não há singularização sem primado universal. Na singularidade dos singularizados veremos o exercício da liberdade e, na universalidade do universalizador, veremos a ideia da autoridade, ou do que é simplesmente autos, sem necessidade de se buscar a si mesmo e, por conseguinte, de se interrogar em liberdade, uma vez que, no supremo autos, a verídica autoridade se confunde com a verídica liberdade." De facto, na parábola, o pai permanece na sua casa, e é o filho, "singularizado", que parte em busca de si mesmo, exercendo a sua liberdade, ainda não a verídica liberdade (ou talvez já...), a essa reconhece-a ele, paradoxalmente, no regresso a casa disposto a servir o pai como escravo. Esta parábola magnífica, interpretada à portuguesa, vê o impulso da saudade tendente à unição, não só na necessidade que o filho sente de regressar, mas também na necessidade que ele sente de partir, quer dizer, na necessidade de singularização. E Pinharanda dá-nos a confirmação logo de seguida: ''Neste contexto, a suidade é intercessora da singularidade e da universalidade, é o vínculo que torna possível a religação das mesmidades e das alteridades à unidade que as identifica, e onde as singularidades assumem o principal critério de unicidade e de universalidade."
Vemos na saudade essa ânsia escatológica, a chave para a redenção ou reintegração dos seres. E isto é diferente da interpretação teológica alemã, francesa... é a nossa interpretação, a nossa forma de cumprir individualmente o universal.
Pinharanda, que sabe isto muito bem, é um autor no qual é evidente o esforço pela revivificação da Tradição dentro do contexto católico romano, a que muitos portugueses se têm oposto, de resto. Para isso tem recorrido ao estudo aprofundado dos autores portugueses, desde muito antes da fundação da nacionalidade, onde já imperava o "espírito do lugar". Neste esforço não tem descurado o estudo da influência de outras tradições que por cá têm passado (como a judaica e islâmica, embora com juízos problemáticos, por excesso de zelo) e deixou-nos esse trabalho, de uma erudição raras vezes vista, nos volumes da História da Filosofia Portuguesa. Este estudo do passado tem, para mim, interesse pelo que pode apontar de futuro: que indicação nos é dada pelo trilho (ir)regular que temos seguido? a dissolução que vivemos apagará todos os vestígios e pistas deixados nesse trilho para que o novo dia se realize? que direcção seguirá o nosso Portugal?

1 comentário:

  1. Excelentíssimo Senhor,
    Com a vossa permissão ou não, vou copiar, plagiar e divulgar o elogio que acabo de ler a um autêntico "amigo do saber" de tal maneira que só foram verdadeiramente filósofos aqueles gregos antigos, que também não cursaram universidade nenhuma além da única que sempre existiu depois que o mundo é mundo. Como sou eu um ateu - graças a Deus! - ando a pensar que o filósofo Agostinho da Silva andava coberto de razão e de fé na idade do "Espírito Santo" no quinto império do mundo. Isto é, a internet.

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