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sexta-feira, 25 de maio de 2012

TEMPOS DE HOJE, 5

















Caleidoscópio

Cynthia Guimarães Taveira

Quando o destino nos conduz para diversas mortes e, quando delas renascemos, a consequência é que o mundo passa a ser caleidoscópico. Caleidoscópico no sentido em que deixa de ter apenas uma dimensão. Quando nascemos apenas como corpo ele tem apenas uma dimensão: a cara da mãe surge-nos no berço a sorrir e ela é apenas uma cara que reconhecemos e que sorri. Não tem profundidades complexas nem níveis de entendimento. Os anos passam e a vida vai desdobrando-se em múltiplos sentidos. O caleidoscópio está sempre a girar e os desenhos são seres vivos que geram outros em sucessão, a partir de um centro. Para os que deixaram que a semente da Poesia se desenvolvesse dentro de si, facilmente a reconhecem tal qual o espírito que sopra sobre águas. Ela atravessa a cidade num passeio, ou o campo, ou as estrelas. O mundo é composto de Poesia. Para os místicos, para além dessa poesia, ele é composto pelas presenças que, mais do que pressentidas, se sentem. Para o Artista, para além dessa Poesia e dessas presenças, o mundo é composto de mudança, como disse o nosso Camões. O que ele vê é que presenças ancestrais, carregadas de poesia, o cercam e o amam, o possuem, a ele se unem para que a obra se faça. Quando Deus quer e o homem sonha, como escreveu o nosso Pessoa, o que existe é uma união entre o artista e o divino, núpcias apenas possíveis apenas pela Poesia ou pelo sonho. É num plano onírico de vigília que o mundo se apresenta como um caleidoscópio criativo. É possível cristalizar alguns momentos em arte. Subtilizar a matéria e materializar o subtil. Aquilo que o artista faz é apenas uma ínfima parte daquilo que ainda tem de ser feito. Como se potencialmente todos os momentos de um caleidoscópio girando eternamente fossem possíveis de agarrar, de se tornarem Ser, como se o mundo fosse um grande campo de borboletas mas só algumas fossem apanhadas, e assim cristalizadas pudessem, enfim, ser observadas na sua variedade e multiplicidade de cores e formas.

No filme A Festa de Babette de Gabriel Axel, a artista, uma cozinheira que transforma os alimentos em arte, a páginas tantas diz: “Um Artista nunca é pobre.” Frase que preenche todo o filme e todo o calor da cozinha onde graciosamente ela se move. Um artista nunca é pobre porque está sempre preenchido por essas presenças e essas escutas. O caleidoscópio brilha mais intensamente e move-se talvez mais rapidamente, uma vez que de alguma maneira a arte contribui para a verdadeira evolução do mundo. Tornando Seres todos os momentos em que o humano e o divino se encontram na Poesia e no Sonho.

Hoje, pensar e sentir assim, é considerado retrógrado e fantasista porque a Arte se tornou num aspecto lúdico, num jogo de palavras, cores, formas e sons. Pensa-se e efectua-se aquilo a que se chama arte com a ligeireza e a leviandade com que se chuta uma bola para longe. Na maioria das vezes os ateliers estão vazios de presenças, apenas o auto-denominado artista lá se encontra brincando com os pincéis, ou com as palavras num eco que é só silêncio oco. Perdeu-se na grande maioria dos casos a noção de divino, de sagrado. Recuperar essa dimensão é, também, recuperar uma companhia. Mas não é uma companhia fantasista como um “amigo imaginário” que apenas tem como função o nosso afastamento da loucura. Essa companhia tem uma existência tão concreta como a nossa. Tem uma vontade tão ferrenha quanto a nossa, obriga às lutas com o anjo, à discussão com ele, à procura de uma harmonia com ele. Para a psicologia, isto é uma psicose, tal é o grau de dessacralização com o qual o homem é confrontado nos nossos dias. Porém, esse mesmo psicólogo é capaz de admirar Dante, Camões, Pessoa, não fazendo a mínima ideia da complexidade e da dinâmica de vida que estão por detrás da criação. Quando Camões canta o Amor, canta a Dama amada, não canta uma fantasia infantil, canta o mais alto grau de Amor que humanamente conseguimos alcançar: todo esse amor é projectado para um plano divino e dele, em simultâneo, é seu produto. Se um psicólogo conseguisse entender isso transformar-se-ia num Camões em vida, com os seus altos e baixos e as suas viagens astrais entre terra e céu e não havia psicologia que lhe valesse, nem auto-estima que procurasse e a criação não mais apareceria como terapia para um melhor enquadramento no mundo. A criação apareceria como o único propósito do mundo e o olhar caleidoscópico não seria visto como fuga, remendo, catarse, escape mas sim como o mundo tal qual ele é, na sua riqueza original. Por isso, andarmos um passo atrás na nossa civilização é, sem que o saibamos, andar dois para a frente, ao contrário do que actualmente tendemos a fazer: dar um passo à frente andando para trás. Chegámos a um impasse de passos e toda a tensão sentida no Século XIX, entre um progresso dessacralizado e um passado que é só memória, permanece em pleno século XXI. O caleidoscópio, esse está sempre lá, à nossa espera, do nosso olhar e do nosso sentir.

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